quinta-feira, 24 de março de 2011

O QUE É A PARA-LEGALIDADE?

Publicado no Jornal Interação, No. 14 (março):6. Reproduzido no Jornal da ADUFRJ, 19 de setembro, p. 7, 2006.

A PARA-LEGALIDADE E A CRISE

Você já reparou quantas vezes por dia cometemos atos para-legais? Para-legalidade é tudo aquilo que sabemos ser moralmente ou legalmente errado, no entanto, fazemos e toleramos com naturalidade. Alguns exemplos mais comuns são: colar na escola, chegar atrasado ao trabalho rotineiramente sem nenhuma desculpa e o chefe-amigo não dizer nada, sair antes do fim do horário, falar longamente de assuntos pessoais ao telefone durante o expediente, trocar e-mails particulares no trabalho, ler o jornal, vender e comprar produtos na repartição, ver pessoas fumando no shopping, no aeroporto, no ônibus, em prédios públicos e não se manifestar, ou ainda, informar a alguma autoridade e ele(a) dizer que nada pode fazer a respeito, ultrapassar pelo acostamento, parar na faixa de pedestres, comprar e vender produtos piratas, fato comum nas ruas do centro, na presença dos guardas municipais, das polícias civil, militar, federal, e de juízes e magistrados que por ali passam sem nada fazer, pagar "uns trocados" para "apressar" um serviço público, furar uma fila, fumar um baseadinho no final de semana etc, etc. Pare e pense se você não cometeu ou presenciou pelo menos uma ou, provavelmente, várias dessas infrações apenas hoje, ou na última semana. Fazemos isso com a mesma naturalidade que escovamos os dentes ou dormimos.

Infelizmente, intimamente junto com o mundialmente famoso "jeitinho brasileiro" para resolver os problemas estão estas práticas, que são profundamente arraigadas em nossa cultura, como já demonstrava Gilberto Freire, observador arguto dos costumes sociais brasileiros, que em seus escritos explorou de diversas formas o cinismo do caráter nacional. Apesar de todas as para-legalidades que cometemos existirem também em outros lugares do mundo, o que chama a atenção no Brasil é a freqüência com que ocorrem, a naturalidade com a qual as encaramos, e a total falta de remorso ou vergonha com que admitimos fazê-las. Isto fala muito sobre o caráter de nossa sociedade, e talvez esteja na raiz de mais essa crise política pela qual estamos passando, com os mensalões, os valeriodutos, os sanguessugas, as “beiradas” das emendas das ambulâncias, etc, etc.

Antes de voltarmos nossa ira apenas para o momento atual, é preciso lembrar da enorme tolerância histórica pelo político que "rouba mas faz", pelo fato de que quase todos os negócios têm algum tipo de "caixa dois", que muitos cidadãos "esquecem" de declarar seus dividendos anuais ao IR, ou mantêm conta bancária em paraísos fiscais, e que isso é encarado com a maior naturalidade, como se não causasse nenhum prejuízo a nação, como se fosse "parte da vida" e "natural". Ora, se não nos rebelamos contra as pequenas coisas que TODOS sabemos serem erradas, se cruzamos os braços porque aqueles atos para-legais não nos afetam diretamente, estamos dando um incentivo para que eles continuem a ocorrer, e se perpetuem. Quando re-elegemos o candidato que "rouba mas faz" estamos dizendo a todos, inclusive à nossa juventude, que roubar é okay. Então por que nos espantamos quando a imprensa noticia o caixa dois do PT? as falcatruas do Marcos Valério? o mensalão do Dirceu? As contas no exterior do Maluf ou do Duda Mendonça? O escândalo dos sanguessugas? Dado o nosso histórico, estas são construções sociais perfeitamente aceitas e, infelizmente, até esperadas em nosso país.

Quantas vezes já ouvimos de alguém que quem é "certinho" é otário? Que se fosse político eleito ia "se dar bem"? Que se tivesse oportunidade "roubava mesmo, porque todo mundo faz," e como respondemos a isso? Na maioria das vezes com o mesmo cinismo e tácito acordo com que o nosso interlocutor se vangloria de sua esperteza. Como podemos cobrar de outrem aquilo que não praticamos?

O Congresso Nacional é, de fato, a expressão máxima da sociedade Brasileira. Ali está o deputado re-eleito diversas vezes cujos eleitores sequer lembram o nome, o senador que "consegue" cestas básicas e serviços médicos para seus eleitores nas vésperas da eleição, o deputado semi-analfabeto, como a maioria da população que o elegeu, o senador que espanca a esposa e dá "carteirada" na polícia, como muitos de seus eleitores gostariam de poder fazer, a deputada "esperta" que de secretária do partido passou a parlamentar, o senador que emprega a família toda "mas faz", e todos os outros que têm freqüentado as páginas dos jornais recentemente. Estes "representantes" da sociedade agem no Congresso exatamente como agimos no nosso dia-a-dia, com a certeza de que nossos pequenos (um conceito relativo, obviamente) atos ilícitos não serão reconhecidos, e se forem, teremos excelentes desculpas para eles, e se estas não forem aceitas tentaremos "dar um jeitinho", e se isso não der certo a "coisa" poderá ser "abafada", e se não for, a pena será leve, e poderá ser cumprida pagando-se algumas cestas-básicas a uma instituição qualquer, ou, na pior das hipóteses, poderá ser cumprida em regime semi-aberto, com direito a redução por "bom comportamento." Em suma, a certeza da impunidade. Naturalmente que há no Brasil pessoas sérias, honestas e incorruptíveis, como o Lineu do seriado A Grande Família. Infelizmente, estas estão sempre envergonhadas e com a impressão de serem minoria - ou apenas fictícias - como o Lineu.

Ao aceitarmos sem questionar a para-legalidade de nossos atos mundanos, ao deixarmos nosso filho fazer xixi na árvore do parque, nosso cachorro defecar na calçada, nossos escolares nos verem passando com o sinal fechado, dirigindo sem o cinto-de-segurança e falando ao celular, estamos construindo uma nação de princípios éticos dúbios, de aplicação tendenciosa e de resultados incertos. Desde nossas origens coloniais de degredados, até o fim da ditadura militar e a recente eleição de Lula, passando pela independência e a proclamação da república, nossa história é permeada de "acordos", "acordinhos" e "acordões", de "jeitinhos", de "politicagem" e de "pactos sociais". Infelizmente, essa história permeia o nosso caráter nacional, nossa ética social e nossa própria auto-imagem enquanto povo. Apenas quando tivermos a coragem de encarar quem realmente somos poderemos tentar mudar nosso futuro.

Hilton P. Silva*

(PARA NOS INTERROGARMOS A RESPEITO)

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